Empresas de tecnologia que desenvolvem produtos avaliam constantemente o envolvimento do usuário. Gerentes de produto, profissionais de Marketing e Designers são conhecidos por ficarem de olho em painéis que rastreiam logins e se preocuparem especialmente com métricas de atividade diária.
As empresas utilizam essas métricas de engajamento como um “proxy” (indicador indireto) para compreender se os usuários estão realmente obtendo benefícios com o produto e se continuarão pagando por ele.
No entanto, essa ênfase exagerada no engajamento não só prejudica os usuários, mas também pode levar a equipe de desenvolvimento a investir excessivamente nos recursos errados.
Por que projetar hábitos pode ser prejudicial aos usuários
Ao medir o “engajamento” em vez do bem-estar do usuário, as equipes podem começar a se questionar sobre o que fazer para tornar o uso do produto um hábito.
A ideia é que se o produto se tornar um hábito na vida do usuário, o engajamento será elevado.
Os hábitos em si não são malefícios. Na verdade, constituem uma parte fundamental de como interagimos com o mundo: são comportamentos que realizamos tão rotineiramente que quase paramos de dar atenção a eles. Pesquisadores estimam que os hábitos compõem até 40% do nosso comportamento em um dia típico. Eles nos possibilitam viver sem a necessidade de tomar uma infinidade de pequenas decisões diariamente, deixando nosso cotidiano menos exaustivo.
Entretanto, por mais que pareça resolver todos os problemas, a proposta de projetar hábitos não é tão simples assim.
Projetando Hábitos: Não é uma solução mágica
A seguir, apresentaremos as duas razões principais pelas quais projetar hábitos não é uma solução infalível para um Design de sucesso.
1 – É difícil criar novos hábitos
Estudos indicam que, dependendo da complexidade envolvida, são necessárias por volta de 7 semanas de repetição de um comportamento para estabelecer um hábito. Quando o Designer decide focar na criação de hábitos, seguirá por um caminho com alto risco de fracasso. Ao utilizar a formação de hábitos como estratégia para gerar engajamento, ele deixa de considerar outras soluções possivelmente mais fáceis para o usuário e com maiores chances de sucesso.
Tomemos o compromisso com uma medicação como exemplo. Esse comprometimento é vital para administrar condições crônicas; trata-se de um comportamento que requer regularidade e pontualidade, ou as consequências são substanciais. Dessa forma, esse cenário pode parecer propício para produtos que nos auxiliem a criar hábitos.
Consideremos, por exemplo, a contracepção. Aproximadamente 16% das mulheres americanas utilizam pílulas anticoncepcionais, que devem ser tomadas todos os dias no mesmo horário. Quando o uso é perfeito, essas pílulas são altamente eficazes, apresentando uma taxa de falha de apenas 0,3% no primeiro ano. Existem diversos aplicativos que ajudam a lembrar quando tomá-las, e o design da embalagem deixa claro qual delas deve ser tomada em cada dia. Todos sabemos que a consequência de negligenciar as pílulas é considerável, uma vez que ninguém deseja uma gravidez não planejada. Contudo, apesar das consequências, do design e dos lembretes, a taxa de falha das pílulas anticoncepcionais para o “uso típico” é de 9%. O motivo é que, mesmo com os melhores esforços e intenções, desenvolver hábitos pode ser verdadeiramente desafiador.
Agora, analisemos outro método contraceptivo: os dispositivos intrauterinos (DIUs), que apresentam uma taxa de falha semelhante ao uso perfeito de anticoncepcionais orais, sendo de 0,2% para os do tipo hormonal.
O DIU se diferencia pelo fato de que a decisão de utilizá-lo envolve uma única ação, sem a necessidade de estabelecer o hábito de tomar uma pílula todos os dias. Consequentemente, não há aumento na taxa de falha dos DIUs.
Obviamente há barreiras para realizar uma ação mais significativa, como inserir um DIU, mas são ínfimas se comparadas às dificuldades de lembrar de efetuar uma pequena ação diariamente.
2 – Hábitos podem ser invasivos
A frequência com que verificamos o Facebook ao longo do dia evidencia o potencial invasivo dos hábitos. Segundo dados da Brandwatch, o Facebook consome 22% do tempo de internet que os americanos passam em dispositivos móveis, enquanto Pesquisas no Google e YouTube, somados, representam 11%. Em média, o usuário gasta 20 minutos por dia navegando ativamente pela plataforma.
Os jogos para dispositivos móveis são outro exemplo de produtos que ocupam bastante o nosso tempo. Peguemos o “Hearthstone” como exemplo, um jogo com mais de 50 milhões de usuários ativos pelo mundo. É divertido jogá-lo, mas pode ser viciante. O jogo utiliza recompensas para estimular a sua volta: à medida que você joga, aprimora, desbloqueia novos recursos e, por vezes, até vence seus amigos. Sem perceber, você desenvolve o hábito de logar sempre que possível para uma partida rápida. Você baixou o jogo apenas para se distrair por um breve período, mas de uma hora para outra se vê jogando sempre que dispõe de algum tempo livre.
Projetando um Comportamento Único
A mensagem central é: apesar de a criação de hábitos ser a solução ideal em alguns casos, também há situações em que não é a melhor escolha. Antes de decidir por essa abordagem como uma maneira de potencializar os benefícios para os usuários do seu produto, é recomendável o Designer estudar a possibilidade de projetar um comportamento único do usuário, levando-o a executar uma AÇÃO SIGNIFICATIVA que proporcione as mesmas vantagens, porém sem a necessidade de ações diárias.
Anteriormente, já exemplificamos um significativo comportamento único: inserir o DIU em vez de ingerir pílulas anticoncepcionais diariamente. Vejamos outros exemplos abaixo:
- Configurar uma transferência automática para sua conta poupança sempre que receber o salário, dispensando a incumbência de transferi-lo manualmente a cada vez.
- Cancelar a assinatura da Netflix e não depender da nossa força de vontade para evitar passar muito tempo no sofá assistindo a filmes, séries e documentários.
- Comprometer-se a caminhar todos os dias adotando um cachorro. Essa adoção única garantirá pelo menos 20 minutos diários de caminhada por uns bons anos.
- Adotar o débito automático para pagar contas, evitando ter que se lembrar do pagamento antes do vencimento todo mês.
Comportamentos únicos são bem menos invasivos e mais fáceis de evitar do que produtos que constantemente consomem tempo e atenção da já atarefada vida dos usuários.
É imprescindível que os Designers efetivamente construam uma arquitetura de escolhas com o intuito de ajudar e não prejudicar, contribuindo assim para tornar a vida das pessoas melhor e mais longa.
Conclusão
Idealmente, o designer não deve criar o hábito de projetar hábitos. O Designer tem a responsabilidade de projetar o sistema que seja o mais benéfico para seus usuários e avaliar seu sucesso com base no bem-estar, em vez de mirar simplesmente na utilização ativa.
Texto adaptado de https://irrationallabs.com/blog/why-designing-for-habits-may-be-harmful-and-the-underused-alternative-to-try/